quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Platão e o método de refutação

O presente ensaio visa analisar as obras platônicas " Apologia de Sócrátes " e " Críton", visando identificar o método socrático de refutação. O ensaio visa ainda compreender a gênese desse processo refutativo empreendido por Sócrates.
Antes de iniciarmos a análise das obras citadas, devemos esclarecer como o método sócratico é entendido pelos comentadores de Platão. Uma de suas características é o estado de aporia que Sócrates e seus interlocutores se encontram ao término de alguns diálogos aporéticos. Não há uma definição sobre o assunto examinado e tema permanece em suspensão. Para André Malta, a ausência de uma resposta a investigação empreendida por Sócrates não deve ser entendida de uma forma negativa, mas com um dos objetivos primordiais do socratismo.
" ...tem dupla função: desqualificar a sabedoria e comportamento dos que apregoavam certo domínio intelectual, e mostrar que a presunçao de ignorância e a desconfiança são princípios básicos de qualquer tentativa de conhecimento, senão o mais importante de todos os saberes."
A refutação de seus interlocutores deve ser vista como uma maneira de exórta-los a busca do verdadeiro conhecimento, ou seja, de despertá-los da ignorância de suporem o saber que na verdade não detém. Essa constatação leva o interlocutor de Sócrates a um autoconhecimento conforme defende Rodolfo Mendolfo.
" A refutaçao representa, pois, a etapa preliminar necessária para encaminhar o espírito à descoberta da verdade; somente o espírito purificado e libertado do êrro pode realizar uma investigação verdadeira, desenvolvendo corretamente a sua capacidade intrínseca. A investigação tornas-se, então, para Sócrates, o exercício de um poder congênito que, antes de tudo, tem que ser libertado do obstáculo que lhe opõem os preconceitos e erros a fim de que possa dar à luz o seu produto genuíno: assim , depois da refutação, apresenta-se a segunda parte do método sócrate, a maiêutica ou arte do parto." Esse método comparado a atividade de um parteiro traduz de forma precisa o processo de descobrimento empregado por Sócrates.
"Ao dizer-se " parteiro das almas", Sócrates queria dizer, em primeiro lugar, que não era pai da idéias que nasciam da alma de seu interlocutor, e, em seguida, que seu papel era apenas de auxiliar o nascimento das idéias para quais o trabalho de parto, tinha, como no caso das mães, que ser feito inteiramente pelo parturiente. Seu trabalho era suscitar no interlocutor o desejo de saber e auxilia-lo a realizar sozinho esse desejo."
O método sócratico não oferece um conhecimento didático, tal qual a relação professor/aluno, mas busca instigar o interlocutor a agir ativamente e reconhecer que esta aparente ignorância e o acesso ao verdadeiro saber, livre das opiniões.
A obra " Apologia de Sócrates " foi escrita por Platão e narra os acontecimentos do julgamento de Sócrates, após este ter sido acusado de impiedade, ou seja negar os deuses da cidade de Atenas e corromper os jovens. No tribunal, Sócrates irá elaborar sua defesa e refutará cada uma das acusações, demostrando o quanto são caluniosas e resultam de uma visão distorcida de sua conduta perante a cidade. O filósofo se insurge contra Meleto, seu acusador formal no tribunal e também contra antigos acusadores, remetendo ao poeta Aristófanes, cuja obra " As Nuvens " apresenta Sócrates como um admirador de entidades celestes denominadas " nuvens " em clara alusão aos filósofos que investigavam fenômenos físicos, o que justificaria a acusação de impiedade e também o associa aos sofistas, pois na obra exige remuneração por seus serviços e emprega a palavra visando tornar " superior o discurso inferior". Algo que Sócrates, na Apologia, nega de forma veemente. Em um trecho da apologia, na narrativa dos acontecimentos do Oráculo de Delfos, Sócrates irá se defender de tais acusações antigas e expor os motivos que levaram muitas pessoas a odiá-lo.
É interessante constatar que Platão irá distanciar Sócrates de qualquer associação com os sofistas, cujo método muitas vezes é utilizado para fins imorais.
Noutro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com seu acusador Meleto, deixando-o embaraçado quanto ao significado da acusação que lhe imputava – "corromper a juventude". Sócrates argumenta e demostra que Meleto não detém o conhecimento sobre o que é bom ou mau para os jovens, portanto não têm competência para denúncia-lo. Durante o interrogatório de Meleto, já encontramos sendo empregado o método sócratico de refutação.
No breve diálogo entre acusador e acusado, Sócrates questiona Meleto, e utiliza o método refutativa que consiste em evidenciar a contradição à qual leva a asserção do interlocutor e permitir isentá-lo da presunção do saber. Meleto, no final do interrogatório é obrigado a admitir uma opinião contrária a estabelecida inicialmente e fica em aporia.
" Mas é! Vou colocá-lo reconhecendo que sim, já que não responde. E quanto aos numes, não os consideramos com efeito, deuses ou filhos de deuses? Você diz que sim ou não?
A refutação de Sócrates incide sobre a tese de Meleto de que ele não acreditava em deuses. O filósofo demonstra a falsidade da denúncia de Meleto e faz com que este admita não ser possível acreditar em numes , que na cultura grega era atribuído a entidades sobrenaturais, e não acreditar em deuses.
Os resultados das refutações revelam a incoerência entre a vida de Meleto e suas denúncias , uma incoerência que se reflecte na inconsistência entre seu sua suposta preocupação com a corrupção dos jovens e sua conduta moral, que se mostra indiferente a tais questões. Revela ainda sua profunda ignorância com relação a acusação de impiedade, fato comprovado pela condição de aporia que se ve sujeito após as argumentações de Sócrates. É importante ressaltar que a condição positiva do método refutativo sócratico não pode encontrar aqui seu principal exemplo, já que a relação entre Sócrates e seu acusador não são amistosas e ocorrem em meio a grande tensão. Todavia encontramos nesse trecho importantes elementos do método de investigação socrática.
No diálogo Eutifron ( Sobre o Dever ), Sócrates aguarda o momento de sua execução na cela e recebe a visita de Críton, o qual tenta convencê-lo a fugir da prisão e assim evitar a sua morte. Críton inicia o diálogo dizendo temer a opinião da maioria das pessoas que o julgariam por negligenciar ajuda a Sócrates, quando dispunha de recursos para facilitar sua fuga.
Ele instruiu Críton a não temer a opinião e a intriga da maioria, estabelecendo que só contaria a opinião de uma minoria: os sábios.
" Sócrates- Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nos inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nos matar.
No diálogo, Sócrates utiliza-se dos recursos de refutação e ajuda Críton a realizar um exame da sua posição e a medida que os argumentos se seguem, o jovem discípulo vai se convencendo da fragilidade de sua opinião e reconhece que não possuia o saber sobre o assunto discutido.
Todavia, o aspecto mais importante a ser destacado no diálogo Críton é se Sócrates deve fugir e assim evitar a aplicação da pena de morte , pois segundo o discipulo a sentença da cidade é injusta.
Sócrates argumenta que não se deve responder à injustiça com a injustiça, nem fazer mal a nenhum homem, seja o que for que ele nos tenha feito.
Sócrates- E daí? Devemos praticar maldades ou não, Críton?
Críton- Não devemos, sem dúvida, Sócrates.
Sócrates- Adiante. Retribuir o mal que nos fazem é justo, como diz a multidão, ou injusto?
Críton- Absolutamente injusto.
Sócrates- Sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma injustiça, não há diferença nenhuma.
Críton- Dizes a verdade.
Sócrates- Em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause. Cautela, porém, ao admitires esses princípios, não o faças em contradição com o teu pensamento, pois sei que essa opinião é e será de alguns poucos. Entre os que a adotam e os que a repelem não existe um ânimo comum; fatalmente se a quererão mal uns aos outros, ao verem os propósitos uns dos outros. Portanto, considera muito bem tu se comungas a minha opinião, se concordas comigo e se nossa deliberação partirá do princípio de que jamais é acertado cometer injustiça, retribuí-la, vingar pelo mal que fazemos o mal que nos fazem, ou se diverges e não co-participas do princípio. Quanto a mim, essa é opinião minha antiga, que ainda agora mantenho. Tu, porém, se tens outro sentir, fala, dá-me a conhecer; se perseveras no de outrora, presta atenção ao que aí decorre.
Sócrates tinha sido fiel e defensor das leis durante toda a sua vida, caso fugisse estaria a condena-las e deitar por terra tudo o que tinha pregado sobre a justiça.
O diálogo termina com Críton convencido pelos argumentos oferecidos por Sócrates.
É importante notar que nesse diálogo, assim como na Apologia , Sócrates sempre se posiciona como perguntador, averigua por um conjunto de premissas se há uma contradição naquilo que o interlocutor acredita como verdadeiro. É preciso que o interlocutor aceite as proposições demonstradas e analise a si mesmo. Se for constatada uma contradição, logo é fundamental a refutação, pois é o maior bem que se pode fazer a alguém que acha saber, mas não sabe daquilo que acha saber.
A análise dos trechos dos diálogos mencionados e a maneira como Sócrates age perante seus interlocutores permite-nos indagar; por que Sócrates refuta?, quais as motivações que o levam a proceder sua investigação e o constante exame? As respostas a tais questões podem ser encontradas na " Apologia de Sócrates ", mas precisamente no episódio do Oráculo de Delfos. Nesse importante trecho da apologia , Platão elabora cuidadosamente a figura de Sócrates, de forma a contrapo-lo a figura dos sofistas e outras associações indevidas feitas por seus acusadores. O episódio pode ser entendido como a inauguração do socratismo, momento no qual o filósofo justifica e afirma sua forma de filosofar, ou seja de viver inspecionando. O episódio narra o momento em que Querofonte viaja até Delfos e solicita a sacerdotisa que pergunte ao deus Apolo se há alguém mais sábio do que Sócrates. A resposta dada pelo deus é negativa , não há ninguem mais sábio. A resposta causa profunda inquietação no filósofo, pois até aquele momento Sócrates só possuia uma certeza, que nada sabia.
" Depois de ouvir aquelas palavras, fiquei refletindo assim: " o que é que o deus está dizendo? e o que é que esta falando por enigma? Pois bem sei comigo mesmo que não sou sábio? Certamente não está mentindo , pois para ele não é algo lícito. ". E depois de ficar muito tempo em aporia ( o que será que ele está dizendo?), a muito custo me voltei para uma investigação disso, da seguinte maneira: fui até um dos que parecem ser sábios, porque, se havia um lugar, era esse onde eu refutaria o adivinhado e mostraria ao oráculo – " este aqui é mais sábio do que eu, e você afirmava que era eu..."
Sócrates começa essa experiência julga que o deus Apolo está enganado e pretende refutá-lo mediante a interrogação de supostos sábios. Sócrates empreende então a interrrogação daqueles homens que julgam possuirem conhecimento e sabedoria, representados por políticos, poetas e técnicos. Ao término dessa empreitada Sócrates constata que nenhum deles eram realmente sábios e que o deus Apolo tinha razão. Sócrates era o homem mais sábio, pois o saber humano reside na consciência de sua ignorância. A essência que Sócrates descobre no episódio do oráculo é que muitos homens pensam deter um saber, mas na verdade, pouco ou nada sabem. E ele, possui um saber maior, pois reconhece esse não saber. A partir desse episódio Sócrates afirma que sua vida será investigar e interrogar em conformidade com deus. A refutação socrática ganha um status divino e Sócrates fará de sua vida uma eterna inspeção.
" Varões atenienses ,eu os saudo e amo, mas obecederei antes ao deus que a vocês e, enquanto respirar e tiver condições , receio não parar de filosofar e a vocês advertir e mostrar ( a qualquer um de vocês que eu sempre encontrar), falando daquele jeito a que estou habituado – melhor dos homens, você, sendo um ateniense , da maior e mais reputada cidade em sabedoria e força, não sente vergonha de militar em favor do dinheiro ( a fim de possuir o máximo possível), e da fama e da honra, mas em favor da reflexão, da verdade e da alma( a fim de ser o melhor possível)..."
Para Sócrates, seu trabalho refutativo visa despertar os atenienses e mostrar-lhes que eles não sabem o que imaginam saber e que este trabalho é feito por ordem do deus. Essa ligação com o divino, faz com que Sócrates se posiciona como um benefício para cidade e que sua morte seria um prejuízo a ela. Sócrates nega renunciar sua filosofia em troca de anistia das acusações, o que estabelece mais uma vez o caráter divino na refutação dos pseudosábios. Sócrates reconhece que esse exercício refutativo lhe custou muitos inimigos na cidade, sobretudo aqueles que o acusaram no tribunal, mas nem por isso irá abandonaria a filosofia.
Werner Jaeger analisa o julgamento e a condenação de Sócrates como um conflito entre o homem ateniense, ligado à polis e sua cultura e um indivíduo que tem consciência de estar atrelado a um Deus.
"Este Deus, a serviço do qual Sócrates realiza sua obra de educador, é um Deus diferente dos " deuses que a polis acreditava". Se era principalmente neste ponto que a acusação contra Sócrates insistia, então acertava realmente no alvo."
A tese defendida por Jaeger é que a atitude de Sócrates, sua espiritualidade, devoção e obediência aos preceitos divinos, inaugura no mundo grego um novo paradigma do homem com a religiosidade.
" O discurso em que ele afirma que se deve obedecer ante a Deus do que o homem encerra indubitalvemente uma nova religião, tal como sua fé no valor da alma, superior ao de todas as coisas."
Referências Bibliográficas:
ARISTÓFANES. " As Nuvens" In: Teatro Grego. Editora Cultrix.
CHAUÍ,,Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. São Paulo: Companhia das Letras. 2002.
JAEGER,Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego/ tradução Artur M. Parreira. 4 ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MONDOLFO, Rodolfo. Sócrates.Ed Mestre Jou.1967.
PLATÃO . Críton. Diálogos, da coleção Clássicos Cultrix. Tradução: Jaime Bruna.
PLATÃO. Apologia de Sócrates, precedido de, Eutifron ( Sobre Piedade) e seguido de , Críton ( Sobre o dever)/Platão; introduçao , tradução do grego e notas de André Malta.Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
 
 
Críton- Isso é claro, Sócrates, haverá quem diga."
" Com certeza."
Ora , seu eu considero numes ( como você mesmo disse) e se os numes são determinados deuses – eis por que digo que você fala por enigmae fica se divertindo, ao afirmar que eu , embora não considere os deuses, volto ao considerar por sua vez os deuses, já que os numes pelo menos eu considero... E se os numes , por sua vez, são determinados filhos bastardos dos deuses, nascidos de ninfas ou de outras mães quaisquer ( das que também se diz que são), qual dos homens consideraria a existência dos filhos dos deuses, mas dos deuses não? Seria igualmente estranho se se considerasse a existência dos filhos dos cavalos ou mesmo dos jumentos – os semijumentos -, mas não dos cavalos e a dos jumentos..."

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