quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Horkheimer e Schopenhauer

TEORIA TRADICIONAL E TEORIA CRÍTICA

     Uma análise superficial pode levar a equivocada conclusão que entre Max Horkheimer e Arthur Schopenhauer há um abismo filosófico intransponível. Embora o pensamento de ambos, possam, a principio, serem antagônicos, um estudo mais detalhado revela, que em muitos aspectos, suas filosofias convergiram numa interpretação da realidade. O objetivo deste trabalho é analisar a trajetória filosófica de Max Horkheimer, dando ênfase a seus textos tardios, onde parece-nos ocorrer uma ruptura com o materialismo histórico e um alinhamento com o pessimismo de Schopenhauer.
No prefácio a reedição da obra Teoria Crítica I, Horkheimer admite a importância da filosofia de Schopenhauer em sua formação intelectual.

“ O pessimismo metafísico, momento implícito em todo pensamento genuinamente materialista, me foi familiar desde sempre. À obra de Schopenhauer devo meu primeiro contato com a filosofia; a relação com a doutrina de Hegel e de Marx, o desejo de compreender e de mudar a realidade social não resgataram, apesar do contraste político, minha experiência com sua filosofia.”1

       Para entendermos o alcance dessa influência, faz-se necessário um recuo aos textos inicias de Horkheimer, onde o materialismo histórico é o fio condutor da Teoria Crítica.
         No ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crítica, Horkheimer funda um movimento intelectual e político que visa à compreensão e transformação da sociedade. Os fundamentos teóricos e conceituais, baseados na obra de Karl Marx, insistem que a realidade seja apreendida levando-se conta as transformações sociais, políticas e sobretudo econômicas. Segundo Horkheimer, o verdadeiro teórico crítico se distingue daquele que pratica a teoria tradicional, devido a sua capacidade de renovar-se e atualizar sua teoria com base em novas configurações históricas .

“(...) o teórico e sua capacidade específica são considerados em sua unidade dinâmica com a classe dominado, de tal modo que as exposições das contradições sociais não seja meramente uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fator que estimula e transforma. ”2

             Assim, a Teoria Crítica tem como meta a compreensão da ação das forças produtivas, a dialética reinante, e , na posse do conhecimento dos processos que bloqueiam a liberdade dos indivíduos, escravizados por uma força irracional, cujo entendimento lhes escapa, elaborar diagnósticos que visam o fim exploração, da miséria, em outras palavras, buscar a emancipação do homem. Essa liberdade, só seria possível, segundo Horkheimer, quando os indivíduos estivessem livre do jugo do capitalismo,da racionalidade instrumental e compartilhassem uma sociedade justa.
Para Horkheimer, é equivocada a idéia de atribuir ao proletariado a verdade universal. Os acontecimentos históricos demostraram que os trabalhadores não são portadores do conhecimento correto da sociedade.

“ Mas nesta sociedade tampouco a situação do proletariado constitui garantia para o conhecimento correto. Por mais que sofra na própria carne o absurdo da continuidade da miséria e do aumento da injustiça, a diferenciação de sua estrutura social estimulada de cima , e a oposição dos interesses pessoal e de classe, superadas apenas em momentos excepcionais, impede que o proletariado adquira imediatamente consciência disso. ”3

É possível perceber no ensaio “ Teoria Tradicional e Teoria Crítica ” um certo pessimismo no diagnóstico e na avaliação do papel do proletariado, entretanto Horkheimeir ainda vislumbrava condições para emancipação.

ESCRITOS PÓS-GUERRA

No entanto, nos anos de pós-guerra, o otimismo de Horkeimer é substituído por uma análise cética em relação as possibilidades de emancipação. Essa descrença está diretamente associada com as mudanças ocorridas no sistema capitalista.
Os estudos de Friedrich Pollock sobre o capitalismo , tiveram profunda influência nos diagnóstico sombrio elaborado por Horkeimer no período pós-guerra. Para Pollock, as mudanças ocorridas no capitalismo provocaram um predomínio do controle político do capitalismo , em detrimento do econômico. Assim, Pollock percebe uma reorganização da economia e não vislumbra o colapso do capitalismo previsto por Karl Marx. Pollock irá denominar esse capitalismo exercido mediante controle politico de capitalismo de estado ou capitalismo administrado.


Tal capitalismo de Estado seria caracterizado, em primeiro lugar, pela retirada do mercado da função de coordenador da produção e da distribuição, substituída por um sistema de controles diretos exercidos pelo Estado. Consequentemente, livre comércio, livre iniciativa e trabalho livre seriam praticamente abolidos. Haveria cinco elementos em torno dos quais se estruturaria , concretamente, tal modelo. Primeiro, seria formulado um plano geral que dirigiria a produção,a distribuição, a poupança e o investimento. Segundo, todos os preços da economia seria administrados em função do plano e não poderiam flutuar livremente. Terceiro, o lucro, apesar de continuar a exercer um papel importante, seria subordinado ao plano, não podendo em nenhuma hipótese contradizer os objetivos deste. Quarto, toda improvisação nas atividades estatais seria substituída por uma racionalização e uma administração científica. Por fim, os meios econômicos seria substituídos por meios políticos como última garantia de reprodução da vida econômica. ” 4

Desta forma, as mudanças garantiram ao sistema capitalista sua sobrevivência, provando sua capacidade de adaptação e superação de crises. Além disso, o controle exercido pelo Estado coibia a ação do proletariado. A teoria marxista, que previa a destruição do sistema capitalista ante sua próprias contradições internas não se confirmou.
As conclusões de Pollock, tiveram uma forte influência nua obra Dialética do esclarecimento escrita por Horkheimer e Theodor W. Adorno. Segundo Marcos Nobre, o objetivo de ambos foi de buscar compreender por que a razão, ao invés de levar a emancipação , resultou num bloqueio estrutural das possibilidades de emancipação. Essa forma de razão instrumentalizada encontra sua forma plena do mundo do capitalismo administrado.

“ mas, se é assim, também o próprio exercício crítico encontra-se em uma aporia: se a razã instrumental é a forma única de racionalidade no capitalismo administrado, bloqueando qualquer possibilidade de emancipação, em nome do que é possível criticar a racionalidade instrumental? Horkeimer e Adorno assumem conscientemente essa aporia, dizendo que é, no capitalismo administrado, a condição de uma crítica cuja possibilidade se tornou extremamente precária.”5

MAX HORKHEIMER E ARTHUR SCHOPENHAUER

No ensaio Horkeimer leitor de Schopenhauer, Flamarion Caldeira Ramos demonstra como o motivo do pessimismo se desenvolveu ao longo de obra de Horkheimer. Segundo Ramos, os textos das décadas de 50 e 60 assumiam um caráter de crítica da sociedade administrada e da razão instrumental,entretanto o ensaio “ O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião” , escrito em 1971, revela uma aproximação com a teologia. Ramos, advoga que o pessimismo sempre esteve presente na filosofia de Horkheimer, mesmo em seus escritos iniciais da década de 30, radicalizando-se nas obras de pós-guerra, que segundo ele é visível a influência de Schopenhauer.

“ Disso é consequência a falência dos sistemas objetivos da razão, que ainda tentavam dar voz às necessidades mais essenciais do homem e da natureza, e em seu lugar entra o mero cálculo e a transformação dos meios em fins. Esse talvez seja o momento mais importante da leitura horkheimiana de Schopenhauer, pois sem dúvida este último serviu de inspiração ao primeiro na medida em que Schopenhauer já considerava a razão , desvinculada de qualquer preocupação com o conhecimento objetivo, como um mero instrumento da vontade de viver.”6.

Ramos afirma encontrar nos textos tardios por Horkheimer uma profunda desilusão. Segundo ele, o filósofo de Frankfurt, ao constatar que os bloqueios para emancipação são de toda ordem, e que qualquer perspectiva de uma sociedade mais justa é improvável, traduz seu melancolia e busca refúgio na filosofia de Schopenhauer. Desta forma, Horkeimer se une a Schopenhauer na crítica ao idealismo, a qual procura justificar o sofrimento e injustiças na expectativa de um devir histórico.

“ A atualidade e o valor de Schopenhauer, segundo Horkheimer , consistem em sua insistente recusa de qualquer conciliação idealista de que o sofrimento encontre sua justificação.”7

Horkheimer reconhece no filósofo da vontade um "pessimista clarividente" que teria antecipado aquilo que a história confirmara. A atualidade de Schopenhauer é então considerada sob ponto de vista histórico, isto é, mediante a confirmação das guerras e de todas as atrocidades e horrores do século XX. Schopenhauer, recusa radicalmente o otimismo hegeliano em face da história, desmistificando "a fábula idealista do ardil da razão, graças a qual se justifica a crueldade do passado em nome de um final feliz".
No que se refere ao sentido ao sentido dessa recusa, Horkheimer entende que para Schopenhauer não é possível haver justificativa para o sofrimento humano e qualquer tentativa nesse sentido e questionável e imoral.
A identificação com a crítica schopenhauriana , assume um outra perspectiva no ensaio de 1971 . Nesse texto, ganha relevo a associação da filosofia de Schopenhauer com a religião cristã . A comparação, parte da convicção que os horrores do mundo e de todos os tormentos carece de um suporte metafísico. A supremacia da razão instrumental, a descrença por toda a filosofia, que não esteja vinculada à pratica, só reforçam o isolamento do homem moderno. Assim, Horkheimer encontra em Schopenhauer o consolo metafísico diante do mundo administrado.

“ tal como os sistemas metafísicos, os religiosos resultam dessa mesma necessidade humana de descobrir o que há para além da natureza ”, para além da existência fenomênica. No que diferem é apenas em que a metafísica, buscando legitimar-se a si mesma por meio da razão, exige um grau de reflexão e cultura de que nem todos os homens podem dispor, enquanto a religião, justificando seus sistemas extrinsecamente, isto é, recorrendo à revelação que os milagres devem corroborar vêm a servir à imensa maioria dos homens capazes de crer.”8

A manutenção do simbolismo da religião não visa, segundo Horkheimer, a instauração de dogmas , mas sim a preservação de idéias, como Solidariedade, Justiça, imprescindíveis para uma sociedade mais justa. A desintegração da família, o declínio da verdadeira autoridade, a perda dos laços, sejam eles religiosos, étnicos, nacionais , confirmam os efeitos nocivos da ciência instrumentalizada. Para Schopenhauer, a ciência, destituída da capacidade de apreender a essência das coisas, é movida apenas pelo impulso e interesse dos indivíduos, portanto sua gênese está associada a Vontade, impulso que a move a faz progredir. Chiarello, reconhece que a crítica dirigida por Schopenhauer se aproxima em muitos aspectos a realizada por Horkheimer em sua tese da razão instrumental.
Se estamos submetidos a força impiedosa da Vontade e não há nada que possamos fazer para deter o curso dos acontecimentos, e se a sensação de estar no mundo é um completo vazio e a iminência aniquilação é de forma paradoxa nosso tormento e nosso consolo, como a filosofia de Schopenhauer pode nos ajudar a superar a realidade? Horkhemeir parece encontrar no pessimismo schopenhauriano uma forma de recuperação com valores esquecidos.

“ A teoria pessimista de Schopenhauer é um consolo. Em contraste com a mentalidade atual, sua metafísica oferece a mais profunda fundamentação da moral, sem entrar em contradição com conhecimento científico e , sobretudo, sem recorrer à representação de espíritos sobrenaturais, eternos, bons e maus.”9

A partir da leitura dos textos citados, pode-se compreender a afirmação de que experiência e a história deram razão a Schopenhauer. Sua filosofia , na análise de Horkheimer, já presentia o mundo administrado e a automação do homem. A sociedade do presente está controlada e submetida a razão instrumental e o único conforto possível, segundo Horkheimer, é teoria da identidade de vontade, a qual permite ao homem admitir que sua finitude é também a de todos os seres , criando nele um sentimento de comunhão com a totalidade. Schopenhauer legaria assim um desígnio, comum a todos os seres, fundamentando filosoficamente o amor ao próximo.
BIBLIOGRAFIA:

CHIARELLO, M.G. A filosofia em duas metades . Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1995.
HORKHEIMER, M. "La actualidad de Schopenhauer" In: Sociologica, 1966.
_____. Teoria Crítica I. Trad. De Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2006.
_____. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Trad. . In: Coleção “ Os Pensadores ”, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
_____. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. Trad. Flamarion Caldeira Ramos. In: Cadernos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.
NOBRE, M. A Teoria Crítica entre o nazismo e o capitalismo tardio. In: Curso Livre de Teoria Crítica. Marcos Nobre ( org.). Campinas: Papirus, 2008.
RAMOS, F.C. Horkheimer leitor de Schopenhauer : uma tradução e um breve comentário . In: Cadernos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.
RUGITSKY, F. Limites e Possibilidades. In: In: Curso Livre de Teoria Crítica. Marcos Nobre ( org.). Campinas: Papirus, 2008.



1Horkheimer, M. Teoria Crítica I. São Paulo : Editora Perspectiva, 2004, p. 8.
2Horkeimer, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 136.
3Idem, p. 134, 135.
4Pollock, F. Tradução Fernando Rugisky. Limites e Possibilidades. In: Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 65
5Nobre, M. Teoria Crítica entre o Nazismo e o Capitalismo Tardio. In: Curso livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 50.
6Ramos, F.C. Horkeimer leitor de Shopenhauer: uma tradução e um breve comentário. In: Cardenos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: Departamento de Filosofia – FFLCH-USP. 2008, p. 102.
7Idem, p. 103.
8Chiarello, M.G. A filosofia em duas metades: Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1995, p. 162.
9Horkheimer, M. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. Tradução Flamarion Caldeira Ramos. In: Cadernos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: Departamento de Filosofia – USP. 2008, p. 127.

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